A garota do espelho me olha assutada
quando apareço de cara limpa e cabelo despenteado. Parece mais forte
do que ela o impulso de levar as mãos à cabeça e tentar arrumar o
que eu não vejo nada de errado. Ela não entende que beleza não se
reflete ali, mas tenta a todo custo seguir padrões que a impuseram
para considerarmo-nos bonita.
Coitada, ela é tão rasa e limitada.
Vive naquele mundinho de vidro e acha que o modo como ela se arruma
ali, a roupa que veste ou a maquiagem que faz determinarão quem eu
sou. Ela não se relaciona com ninguém, eu sim. E sei que o que ela
me forçar a fazer de frente pra ela não vai influenciar nisso. Mas
ela não me ouve.
Travamos grandes batalhas todos os
dias. Ela me dizendo que eu estou feia. Eu dizendo a ela que não
tenho que ser bonita. O meu argumento de que beleza é um sentimento
abstrato que toca a alma e não os olhos parece não atingi-la. A
minha explicação sobre como os outros querem impor como devemos ser,
sobre a indústria que cria um padrão de beleza inalcançável para
lucrar minhões, sobre a nossa imersão numa cultura que se preocupa
com corpos e não com cabeças, que enxerga peito e não coração,
que nos faz comparar violão com mulher, homem com príncipe e beleza
com felicidade....NADA a faz desistir de me julgar. O tempo todo.
Como ela é pedante e inconveniente!
Mesmo quando não a vejo ela ecoa na minha cabeça. Tenta controlar o
que eu faço ou o que eu como para que nada que ela goste mude. Eu
grito que não estou nem aí pra ela, mas ela não acredita.
Essa luta me cansa tanto! Mesmo assim
eu juro que não a deixarei ganhar. Eu não quero acabar igual a ela:
uma imagem ambulante a ser admirada.